Nada serei nem nada saberei comparado com o tudo que sei e o nada que não sou

Um dia tudo se esfumará numa memória, num resto, num perfume inacabado, numa ideia pouco idealizada, num nada de tudo ou num tudo de nada. Um dia não vou encontrar explicação para nada. Um dia morro inundada de lágrimas, um dia morro (em lágrimas).
Aqui, vivo e sinto o que todos nós sentimos. Mas só aqui. Aqui, neste preciso local. Não quero ouvir lamurias, nem choros, nem sorrisos, nem contentamentos, nem nada. Não quero porque não passa de nada. Não quero nada!
Aqui, sentada neste banco de jardim olho as crianças a brincar e a saltar. Como é bom ser criança. Como é bom não ter noção de nada. Não ter problemas reais. Viver naqueles castelos de príncipes e dragões misteriosos onde o bem acaba sempre por reinar. Onde não existe amanhã. Onde a diversão é o núcleo fundamental para o desenvolvimento.
Olho em redor e vejo uns olhos claros e tristes a aproximarem-se de mim. Deve ter uns cinco anos, mais ou menos, penso eu enquanto o olho. Na minha cabeça vêm-me à memória imagens estranhas e complexas, tão complexas que acabo por não alcançar o que o (meu) pensamento quer que alcance. Fecho os olhos e sinto as imagens a evadirem-me o corpo, sinto um arrepio nas costas, o coração, acelerado, a querer parar, o sangue a escorrer-me pelas veias…
-Tens um cabelo bonito.
Abro os olhos, as imagens, o terror sobre a precariedade das coisas, o medo do silencio, a escuridão total. Desapareceu. Aquele sentimento obscuro desapareceu e eu olhei para o rapaz.
-Mas tu és mais bonito que o meu cabelo sabias?
Ele olhou para mim, olhos tristes, cara deslavada, corpo imóvel.
-Eu? Eu não tenho pais por isso não sou bonito.
O terror voltou a invadir-me mas desta vez controlei-me.
-Claro que tens pais. E claro que és bonito.
Ele não acreditou em mim e olhou-me como se fosse uma mentirosa.
-Os meus pais deixaram-me o ano passado. Vivo com o meu padrinho. O meu padrinho não gosta de mim.
Eu, perplexa, olhei-o, olhei para o céu e tentei acalmá-lo.
-Estás a ver o sol?
-Sim! – Exclamou ele.
-Tu és como o sol. – Disse-lhe eu em tentativa de solidariedade.
-Como o sol? Porquê? O sol faz-me doer os olhos.
-A lua à noite vem substituir o sol. Mas o sol é mais importante porque é ele que te aquece durante o dia. Podes achar a lua mais bonita porque a consegues ver durante mais tempo e não te faz doer os olhos mas o sol é mais importante. Já imaginaste como seria vivermos sem o sol? Estava sempre de noite e tenho a certeza que gostas mais do dia do que da noite. À noite não podes brincar no parque…
-A noite é para dormir! – Interrompeu ele.
-Sim… Tu és o meu sol porque gosto de ti e de falar contigo. Podes ser apenas a lua dos teus pais mas pensa… Se fores a lua dos teus pais e o meu sol não achas que és importante?
-Mas… os meus pais deixaram-me. Estão em Angola. – Disse ele com um ar desgostoso.
-Pensam em ti. E tenho a certeza que quando olham para o céu te vêm lá. Vêm o reflexo desses teus olhos claros. Na lua.
-Quero ser o sol para eles também! – Exclamou ele chateado.
-E podes ser, só tens de acreditar neles assim como acreditas em mim.
-Tens um cabelo bonito.
-Mas tu és mais bonito que o meu cabelo sabias?
-Sabia! Eu sou o sol. Sou o teu sol.
Eu olhei-o e soltou-se uma lágrima. No fundo sei que um dia não vou encontrar explicação para nada. Um dia morro inundada de lágrimas, um dia morro (em lágrimas).